Uma das manifestações mais conhecidas do espírito descontraído do brasileiro são as brincadeiras e piadas relativas ao Dia da Mentira. No primeiro de abril, peças e troças (virtuais ou presenciais) são pregadas por todos os quadrantes do nosso país. Infelizmente, neste primeiro de abril, a alegria está ofuscada pelos seguidos recordes de números de mortos pela Covid-19.
Mas existe outra mancha na história brasileira, diretamente relacionada ao Dia da Mentira. Trata-se da implantação do regime ditatorial no país, no ano de 1964. Apesar de a narrativa militar difundir que a revolução (o nome correto é golpe) ocorreu em 31 de março, inúmeros historiadores comprovam que a movimentação golpista foi iniciada no fim da noite do dia 31 de março, mas somente foi concretizada na madrugada do dia 1º de abril – mesmo porque a deposição do presidente não é datada de 31 de março.
Não bastasse a catastrófica crise sanitária e econômica no Brasil, ainda somos arrebatados por uma crise política sem precedentes. Nem na época da ditadura, ocorreu a troca simultânea de todos os comandantes das Forças Armadas, como a promovida pelo capitão cloroquina, sempre disposto a rasgar e a distorcer a Constituição Federal, a perseguir e atacar as vozes dissidentes da sociedade, a promover uma insegurança jurídica e uma convulsão social, que potencializam a difusão do ódio, do preconceito, do desprezo à vida, “legitimando”, assim, um nove golpe no país. A verdade é que falta inteligência e habilidade política e sobra autoritarismo e beligerância ao capitão presidente.
Em função da desastrada e letal atuação governamental, que impede que a economia decole e catapulta o número de mortes, atingindo a estratosfera da necropolítica, significativa parte do empresariado nacional revê seu apoio político ao aventureiro negacionista.
Eles sabem que vivemos outros tempos, diferentes daqueles do regime militar, e que um mundo capitalista e globalizado como o de hoje, não tolera retrocessos políticos que comprometam a realização de lucros por parte das grandes empresas.
Não há dúvida que o posicionamento do segmento empresarial a favor do bom senso e dos princípios constitucionais na condução do país neste momento de grande turbulência política e social é importante, mas o flerte de parte do segmento empresarial com o retrocesso democrático não é novidade, como também é usual (mas antiético e improdutivo em termos sociais), a proximidade promíscua com setores políticos da sociedade civil, objetivando criar “necessidades” de gastos públicos com políticas voltadas aos interesses de grandes conglomerados empresariais, em detrimento das necessidades e anseios da maior parte da população brasileira.
É preciso esclarecer que, o mercado nacional para obras estatais, que já se fortalecia nas décadas de 1920 e 1960, deu um salto gigantesco após o golpe de 1964. Os grandes empresários – em particular os do setor da construção pesada, – iniciaram uma forte pressão, através de estudos, planos e projetos amplamente divulgados junto à imprensa, para que os entes políticos aprovassem recursos públicos para a realização de obras de infraestrutura, visando solucionar os problemas do país.
Assim, os setores de transportes, energia e ferrovias, foram escolhidos em função do volume de recursos a serem aportados – e também devido aos conhecimentos técnicos para realização dos projetos, o que se confirmava na criação de oligopólios.
O interesse crescente pelos recursos públicos também provocou uma aproximação dos empreiteiros com as agências estatais e com os políticos, através do apoio a estes políticos e do suporte técnico e do direcionamento das ações das referidas agências.
Não é mera coincidência que este modus operandi perdure ainda nos dias de hoje. A maior parte do corpo técnico das agências reguladoras vem da iniciativa privada, o BNDES continua a financiar as grandes empresas, a classe empresarial ocupa grande espaço político através de inúmeras bancadas. Não é por acaso que, nas últimas décadas grandes projetos, pensados na época da ditadura ou moldados pela mesma lógica golpista, voltem à baila; podemos citar a hidrelétrica de Belo Monte, as usinas do Rio Madeira, rodovias, trem bala etc.
Afinal de contas, qual a relação entre os militares e os grandes empreiteiros? Se vivemos em uma democracia, porque estes empreiteiros se prestam a apoiar um governo com forte inclinação fascista e extremamente despreparado?
A resposta é que não podemos falar somente em golpe militar de 1964. Sem o apoio da parcela empresarial mais forte e articulada, provavelmente o golpe não teria sucesso; portanto, devemos falar em ditadura civil-militar. É sintomático que, durante a vigência do regime militar, o governo mais elogiado pelos empresários foi o do general Médici: justamente o que mais reprimiu e torturou.
A história não mente, apesar de os líderes autoritários procurarem apagar passagens e distorcerem fatos históricos, para se beneficiar da desinformação.
Além do mais, alguns questionamentos podem surgir. Como podemos afirmar que ocorreu uma ditadura no Brasil, se ocorriam eleições regulares? A verdade é que, com o golpe de 1964, os partidos políticos foram extintos e foram impostas regras para a fundação de novos partidos, restringindo a participação civil a depositar os votos nas urnas; não eram permitidas reuniões, cujos participantes manifestassem desaprovação ao governo ditatorial. Perseguições, mortes, exílios e até o fechamento do Congresso Nacional, são tristes páginas de um livro escrito com a vergonhosa pena da mentira.
Não à toa, o atual governo tem por inimigos todos os políticos de oposição, as instituições jurídicas defensoras da constitucionalidade democrática, as universidades, os sindicatos e a imprensa.
Neste Dia da Mentira, a única verdade é que uma parcela influente da sociedade política e notadamente alguns empresários, ainda apoiam o atual desgoverno, vislumbrando o retorno aos tempos em que a ditadura rendia muitos recursos públicos, exercia uma fiscalização de fachada e o povo era impedido de se manifestar.
“Brasil acima de todos”, “gripezinha”, “a terra é plana”, “a Amazônia é preservada”, “acabou o toma lá, dá cá”, “a pandemia está no fim”, “a culpa é dos governadores, dos prefeitos e dos comunistas”, “a gestão da pandemia é exemplar”, entre outras. Viva o Dia da Mentira!