Em 2018, quando o candidato da Esquerda perdeu a eleição presidencial, não ocorreram bloqueios de estradas, não foi pedido golpe de estado e nem a prisão de membros do Poder Judiciário. O resultado das urnas, as leis e a democracia foram respeitados.
Agora, imagine o contrário: as estradas paradas por cidadãos, vestindo camisas vermelhas, que não aceitaram a derrota de seu candidato: qual seria a atuação da PM, da polícia federal e da polícia rodoviária federal? E se fossem pessoas da periferia, negros e majoritariamente pobres, que saíssem às ruas? Seriam tratadas como “cidadãos de bem”?
Independentemente do resultado das eleições e de cada ideologia política, todo e qualquer agente público deve, no exercício de suas atribuições, manter-se afastado de suas convicções subjetivas e cumprir com suas responsabilidades. Qual a justificativa para o comportamento ilegal da polícia rodoviária federal, que parou diversos ônibus que levavam eleitores para votar, principalmente no nordeste do Brasil? Qual a justificativa para o comportamento complacente dessa mesma polícia, ao prevaricar na liberação das rodovias brasileiras? Por que algumas torcidas de clubes de futebol desbloquearam estradas e outras vias públicas, mas as polícias não conseguiram?
Com relação aos protestos ocorridos logo após a declaração da lisura e da legitimidade das eleições de 30 de outubro, existem algumas evidências:
- A democracia é o único sistema que permite manifestações contrárias à própria democracia;
- As ações de bloqueio das estradas, de pedido de intervenção federal e militar e de prisão de ministros do STF são ilegais – crimes previstos no Código Penal, em seu artigo 359;
- Grande parte dos policiais prevaricou, ao não cumprir, de forma imediata, as decisões da Justiça sobre a desobstrução das estradas. Se foram ordens superiores ou iniciativas individuais, elas não deixam de ser crimes, que devem ser devidamente apurados, investigados e punidos;
- O uso das redes sociais não pode ser tolerado para a incitação de atos criminosos, o que é bem diferente de, simplesmente, expor opiniões. Não se trata de defender a censura, mas sim, de evitar o mau uso dessas plataformas;
- As ações ilegais de não aceitar os resultados das eleições já estavam em planejamento, desde a invasão do Capitólio, nos EUA, por apoiadores do ex-presidente Trump: esta é mais uma imitação tupiniquim do autoritarismo, que é diferente do conservadorismo.
No tocante aos discursos e manifestações do presidente e do vice-presidente derrotados, fica claro que ambos não querem fortalecer a democracia e nem muito menos acabar com o clima de ódio criado por eles mesmos. Em todo o Brasil, através da propagação de mentiras nas redes sociais, do uso do dinheiro público para cooptação do Congresso Nacional, para compra de votos, em benefício próprio e de seus amigos, tudo criminosamente acobertado pela decretação de sigilos por 100 anos, pela inércia da Procuradoria Geral da República e pela própria atuação tendenciosa de grande parte daqueles que deveriam defender e aplicar, de forma equidistante, as leis em vigor.
Quando o presidente fala por duas vezes após a eleição, sem reconhecer os resultados das urnas, ele mesmo afirma que as manifestações são bem vindas e não mostra que essas ações são ilegais e criminosas, dando mais uma demonstração da sua covardia em não defender a ordem institucional e democrática. Afinal, a maioria dos votos válidos foi a favor do outro candidato. Ao esconder suas limitações intelectuais e políticas, seu DNA autoritário e sua história repleta de agressões e transgressões, com discursos de fraude nas urnas (totalmente descartada), de ataques às instituições democráticas, o capitão presidente mais uma vez fraqueja como ser humano e como homem público.
O vice-presidente derrotado também não fica atrás: desvirtua e ignora fatos, repetindo a ambiguidade das falas do capitão cloroquina. É ridícula a pretensão de enganar seus apoiadores, ao interpretar números da votação e induzir as pessoas a não acreditarem na legitimidade desses números. É golpista a fala de que o povo foi passivo, ao aceitar, de forma passiva, a candidatura do presidente Lula.
É irresponsável afirmar que 90 milhões de brasileiros não votam em Lula – afinal de contas, é uma questão matemática e histórica, pois, em todas as eleições, o presidente eleito nunca recebeu mais votos do que a soma dos votos de seu adversário, dos votos brancos e nulos. Será que ele esqueceu que, em 2018, a chapa na qual ele era vice-presidente não foi votada por 89 milhões de eleitores e chegou ao poder com 57 milhões votos, ou somente quer confundir a cabeça do povo?
Não adianta falar em live que as estradas devem ser desbloqueadas, ao mesmo tempo em que afirma que as manifestações são bem-vindas. Esse é mais um comportamento covarde daqueles que têm, ou deveriam ter, obrigações com a ordem social e com a democracia – é mais uma fraquejada, às vésperas de perder o foro privilegiado e com grande risco de ser preso.
Para o bem da democracia, os inúmeros crimes cometidos antes, durante e depois das eleições devem ser rigorosamente apurados e punidos, pois o Brasil corre sério risco de militarização da política – prática usada pela extrema-direita, seja ela fascista ou simpatizante dessa militarização. Nosso país não pode ficar refém do ódio, da violência e do preconceito: é preciso repactuar nossa sociedade, em defesa da educação e da valorização de uma sociedade mais humana e igualitária.
Jamais podemos esquecer que uma mente doentia e má aproveitou-se da indignação do povo, da desinformação, da manipulação da comunicação em massa, para prender e matar adversários políticos, pensadores discordantes de suas ideias, negros, homossexuais, judeus, pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais e ainda iniciar uma guerra mundial. O Brasil deve cultuar a paz e matar as ervas daninhas do autoritarismo neonazista, pois o nosso país tem a triste marca de ser a terra onde este movimento mais cresce nos dias de hoje.
Preconceito, golpe militar, racismo, homofobia, xenofobia, violência política e nazismo são crimes, e não apenas opinião: a liberdade de expressão exige responsabilidade.