Nos dias de hoje, o tema da intolerância religiosa ganhou um espaço na vida das pessoas, que não ocupava anteriormente. Sem emitir qualquer juízo de valor sobre as diferentes religiões, devemos pensar um pouco se é prioridade social e humanitária substituirmos a tolerância religiosa por uma mistura entre religião e governo, tendo em vista que a história da humanidade contém exemplos nada benéficos desta relação.
Em quase todos os canais da televisão aberta, inúmeras igrejas transmitem sua palavra para os telespectadores, sendo que, a maioria delas, aproveita a oportunidade para solicitar contribuições financeiras dos seus fiéis, ou daqueles que buscam uma solução imediata para seus problemas. É inaceitável condicionar a recepção de bênçãos ao valor do dízimo, ou mesmo justificar a não concessão destas bênçãos, alegando que a fé demonstrada não foi legítima ou suficiente.
Não à toa, existe um dito popular que afirma: “religião não se discute”. É claro que, quando falamos em tolerância religiosa, devemos evitar as críticas a qualquer religião, entretanto, isso não nos proíbe de discordar daqueles que distorcem a religiosidade e a usam em benefício próprio, ou do grupo mais próximo deles.
Como surgiu a tolerância religiosa?
John Locke, filósofo britânico nascido em 1632, foi o primeiro pensador a dedicar mais atenção ao tema da proximidade exagerada entre o poder civil e a religião. É preciso compreender que, o referido pensador viveu em um período onde predominava o regime feudal, em que os senhores tinham poderes sobre as terras, sobre as armas e eram próximos da Igreja Católica, como forma de divinizar a sua pessoa e todas as suas ações.
Obviamente, quem não fosse amigo do rei, era explorado por esse regime, no qual a economia era baseada na agricultura e as terras pertenciam aos senhores feudais. Para termos uma ideia da relação entre poder e religião, o primeiro filho destes senhores feudais cuidava do exército e das armas, enquanto o segundo filho era direcionado para os ofícios religiosos.
Os feudos e os reinos viviam em constates ameaças de guerra pela posse das terras. Quanto mais terra, mais poder e mais súditos, que trabalhavam para sustentar os luxos e a luxúria palaciana.
Com o crescimento das cidades e o avanço do comércio em escala mundial, estas guerras militares e religiosas começaram a ser questionadas. Exemplo disso são as cruzadas, que misturavam interesses religiosos e financeiros. A expansão da economia era seriamente ameaça pelos gastos com estas guerras, a miséria do pós guerra impedia que as pessoas produzissem e consumissem alimentos, comprassem roupas e outros produtos. Sem a paz, não haveria progresso: era preciso acabar com o viés religioso das guerras, pois eles mais atrapalhavam, do que ajudavam a economia a crescer.
Neste contexto, John Locke escreveu a “Carta sobre a Tolerância”, através da qual defendia a separação entre governo e religião, como forma de libertar do jugo dos senhores feudais o emergente segmento de comerciantes e donos de pequenas indústrias. Surgia, assim, um dos princípios básicos do liberalismo e a tolerância religiosa. As diferentes religiões deveriam ser tolerantes entre si, para que a economia pudesse se fortalecer.
O emergente sistema capitalista precisava de paz para crescer. Portanto, o Estado jamais poderia promulgar leis baseadas em preceitos religiosos, já que a orientação era de defesa da liberdade e fim do regime feudal. Até hoje, é válida a ideia de que o Estado deve ser laico, o que, inclusive, consta em nossa Constituição Federal. Mas será que o Estado Brasileiro está deixando de ser laico?
Religião e governo
Religião e governo são duas coisas distintas, importantes e necessárias para uma sociedade, sempre afirmando que uma democracia comporta diferentes crenças religiosas e também deve acolher e respeitar aqueles que não possuem nenhum tipo de religião.
Não podemos aceitar que uma determinada religião procure impor seus valores e princípios a todas as pessoas, e, muito menos, que as religiões ataquem umas às outras. Se concordarmos com isso, estamos decretamos o fim do Estado Laico e a volta da intolerância religiosa e do fanatismo.
Ser zeloso com o evangelho não significa interferir no poder civil, e, muito menos, impedir que as pessoas façam suas escolhas religiosas, mesmo que a educação aborde este tema de forma democrática e esclarecedora.
As igrejas são como as pessoas – que são diferentes, convergem em alguns pontos, não possuem jurisdição e nem poder sobre as outras e todas estão sujeitas a uma autoridade civil, que deve promover o convívio saudável e o respeito entre as pessoas e as instituições da sociedade civil. O Estado tem o dever e o poder de punir aquele que violar as regras e as leis do convívio social, mas jamais pode punir alguém pelas suas opções religiosas.
A comunidade civil tem interesses específicos e é uma sociedade de homens que busca uma vida melhor – a saúde, o dinheiro, as terras, as casas, a liberdade, entre outras coisas. Já as comunidades religiosas buscam mais proximidade com suas divindades, portanto, o poder público jamais pode ser usado para punir aqueles que possuem religião distinta daquela adotada pelos que se encontram no poder.
É, no mínimo, preocupante, a escalada de alguns evangélicos na política nacional, que priorizam seus iguais e atacam – velada ou deliberadamente – os adeptos de outros segmentos religiosos. Indicar um candidato “terrivelmente evangélico” e privilegiar valores típicos de um segmento religioso, em detrimento dos demais, e, principalmente, da sociedade como um todo, não é uma conduta democrática.
É obvio que a opção por uma ou outra religião não é impeditivo da ocupação de cargo público, mas não é correto usar de forma indevida a fé das pessoas e impor ao Estado conforme a vontade de alguns, tal qual aconteceu quando os reis, os senhores feudais e a Igreja Católica determinavam, com mão de ferro, em que as pessoas deveriam acreditar e como precisavam se comportar.
Uma sociedade que não conhece a sua história, provavelmente repetirá seus erros e não evoluirá – nem economicamente, nem religiosamente.