Peste negra, gripe espanhola, ebola, gripe aviária, AIDS e varíola são apenas alguns exemplos de pandemias, que ceifaram milhões de vidas na história mais recente da humanidade. Em curso nos dias de hoje, a temida Covid-19 demonstra que as políticas preventivas em termos de saúde não são prioridades na agenda daqueles que detêm o poder político e econômico no Brasil.
Este perverso quadro é resultado de uma lógica capitalista, que prioriza o direcionamento dos recursos disponíveis (capital), para as atividades que geram maior lucro. Isto significa dizer que existe uma abismal diferença entre as expectativas do povo e as das elites governantes (leia-se: classe política e empresarial), sendo que, os gastos com a saúde da população e com o combate à fome, perdem em termos de rentabilidade para obras nem sempre necessárias, para a corrupção e para o desprezo com as desigualdades sociais.
A reação do governo brasileiro no combate à Covid-19 é tardia, ineficiente, politizada e só dá sinais de vida após a queda vertiginosa do apoio ao atual presidente, que tem um enorme apetite pelo poder; mirando a reeleição, ele dispara, continuadamente, contra a Democracia. Uma das justificativas da inércia federal é a de que a economia não pode ser paralisada por medidas de isolamento social; ocorre que, antes do início da pandemia, a economia nacional já caminhava em ritmo acelerado à estagnação; o desemprego já era crescente, o poder aquisitivo despencava e a informalidade já era vista como “normal”.
A má gestão política, por pura incompetência e um viés ideológico impregnado por ideias fascistas, potencializam a crescente espiral necrófila da Covid-19, que já ultrapassou a cifra de 410 mil vidas perdidas. Estamos à beira de uma convulsão social, por causa da beligerância e da intolerância de radicais apoiadores do capitão presidente em sua cruzada golpista. Outro fator de preocupação é a fome, que a cada dia enfraquece a Democracia e mina as esperanças e os sonhos dos brasileiros, alimentando o desespero dos que mais precisam do Estado, ampliando o fosso das desigualdades sociais.
Não é admissível que não nos sensibilizemos com milhões de irmãos brasileiros e de outras nacionalidades passando fome. Mais do que arrecadação de alimentos (bem-vinda no curto prazo), o país precisa de políticas públicas que ponham comida no prato de todos e todas. Para tanto, precisamos de políticos conectados com a realidade nacional, em vez de convivas das ilhas da fantasia em que se tornaram os espaços legislativos.
Um dos principais obstáculos ao combate à fome é a desvalorização do trabalho como motor da transformação social e alavanca da economia. Como comprar comida, sem salário ou algum tipo de renda? Como comprar comida, com os programas sociais de transferência de renda sendo continuamente sabotados?
Este tipo de comportamento das elites não é novo. David Ricardo, economista clássico inglês, em seu livro Princípios da economia política e tributação, datado de 1817 afirmava que: “O trabalho como todas as coisas que são compradas e vendidas e cuja quantidade pode ser aumentada ou diminuída, tem seu preço natural e seu preço de mercado. O preço natural do trabalho é aquele necessário para permitir que os trabalhadores em geral, subsistam e perpetuem sua descendência, sem aumento ou diminuição”. Este princípio da economia política por ele proposto, ficou conhecido com ‘A lei de ferro dos salários’.
Esta lógica liberal repercute até hoje – basta citar que o salário mínimo oficial é de R$1.100,00, cujo reajuste não cobriu nem a inflação acumulada nos últimos doze meses. Por qual razão várias instituições citam e defendem a aplicação da Constituição Federal por vários motivos, mas dificilmente alguém fala do art.7º?
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. Não por acaso, o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) aponta que o valor do salário mínimo deveria ser de R$5.495,42 para uma família de dois adultos e duas crianças.
Com exceção de uma iniciativa das Centrais Sindicais, que defendia o ganho real do salário mínimo via índices de reajuste acima da inflação, o Brasil jamais cumpriu a Constituição Federal, no tocante ao salário mínimo. Ignorar a importância do trabalho em nossa sociedade, tratando-o como simples mercadoria, não adotar um salário minimamente digno e não priorizar investimentos sociais e políticas públicas assertivas e inclusivas, têm sido o comportamento das elites dominantes nesse país.
É um disparate que a classe política legisle em causa própria; enquanto o povo passa fome, os deputados que recebem salário acima de R$33.000,00 tem direito a reembolsar despesas médicas da ordem de R$170.000,00; enquanto o pobre espera meses para ser atendido pelo SUS, ou morre na fila das UTIs, nossos zelosos deputados têm direito a plano de saúde com cobertura nacional, extensivo aos dependentes, pagando apenas R$640,00 por mês.
O povo não quer esmola! O povo quer trabalho e oportunidade de melhorar sua condição social. O combate à fome não pode ser feito somente através de doações de cestas básicas em tempos de crise; é preciso uma política de Estado, pois a fome dói, todos os dias.
Em janeiro de 2004, foi sancionada a Lei 10.835, de autoria de Eduardo Suplicy, que instituía a renda básica de cidadania para todos os brasileiros e estrangeiros que moravam há pelo menos cinco anos no Brasil. Esta renda viria através do pagamento de um benefício monetário, para atender as despesas mínimas com alimentação, educação e saúde, sendo que o programa Bolsa Família foi o primeiro passo.
A elite brasileira não aprende com os erros cometidos, tão pouco se preocupa em acabar com a miséria e com a fome. Basta recordar que, em 1980, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, fundou o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), e, em 1990, tornou-se símbolo de cidadania no Brasil, ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Estes são apenas alguns exemplos de oportunidades de construir um país socialmente mais justo, desperdiçadas por uma elite política e econômica que não sabe o qual o som de uma barriga roncando de fome, que não sabe o que é dividir um prato de comida, que não sabe que uma renda mínima estimula o consumo interno, reduz gastos sociais e dá dignidade ao povo.
A fome das elites é diferente da fome do povo.